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sexta-feira, 8 de abril de 2016

Elucubrações sobre a religião em mundos de RPG

Independente de suas crenças ou visão sobre a religião no mundo real, não existe como negar que a religião foi uma força poderosíssima ao longo da história da humanidade. Organizações religiosas ajudaram a expandir e derrubar impérios, destruir ou disseminar ideias e influenciaram as mentes tanto de governantes como das pessoas comuns desde sempre até hoje. Em mundos de RPG, as religiões são igualmente importantes, elas ajudam a dar forma aos cenários além de serem elemento central na vida de muitos personagens. Entre os arquétipos clássicos da fantasia medieval, o clérigo, o paladino e o druida são, de uma forma ou de outra, sacerdotes. Mas, a religião dos mundos de RPG faz sentido? Podemos melhorar o modo como usamos essa ferramenta em nossos jogos de RPG?

O panteão grego - mesmo eles concordavam em alguma coisa!

Múltiplas religiões ou uma só?

Em mundos de RPG é comum que os deuses participem muito da vida dor mortais, tal qual acontece nas lendas gregas, por exemplo. Os deuses conversam com os mortais e eventualmente descem ao mundo de alguma forma para interferir na história. Isso é legal e funciona em muitos casos, mas isso faz com que no final só exista uma religião naquele cenário. Clérigos e paladinos específicos podem escolher se dedicar a um deus ou outro, mas no final todo mundo tem certeza de que certo conjunto de deuses existe. Curiosamente, mesmo em mundos com múltiplos panteões, isso frequentemente é verdade, e todo mundo tem certeza de que todos os deuses existem, e só existe discordância sobre qual divindade é mais influente e poderosa.

Para que um cenário realmente tenha religiões diferentes, é preciso incluir no mundo um pouco da incerteza que temos em nosso próprio mundo. Só podem existir múltiplas religiões se ninguém pode ter absoluta certeza sobre quais deuses existem, pois apenas assim pode existir a discordância sobre quais deuses são reais.  Em um cenário assim, o principal indício da existência dos deuses são os milagres executados por seus clérigos (as famosas magias arcanas). Isso abre espaço para religiões rivais, com visões radicalmente diferentes sobre como o mundo foi criado ou quais deuses são reais. Eu não acho que todo cenário tem que partir dessa premissa, mas acho que essa é uma premissa interessante e extremamente subexplorada nos RPGs de fantasia.

Mas, o que essa religião prega mesmo?

Pesquisando para a postagem sobre drows, eu revivi um drama que sempre se repetia quando eu tentava explicar a religião de algum cenário de RPG para jogadores novatos: o de não existirem descrições claras sobre os dogmas de muitas religiões de mundos de fantasia. Nesse ponto, eu gostaria de aplaudir o cenário de Tormenta, que possui obrigações e restrições claras para os clérigos, o que já ajuda muito! Voltando ao assunto, manuais de RPG sobre religião frequentemente se focam na cosmologia e/ou poderes concedidos pelos deuses, sem explicitar o que a religião representa para as pessoas comuns. Quais são os princípios morais daquela religião? O que seus seguidores consideram certo ou errado? Como eles veem os membros de outras religiões? Todas essas são questões cruciais, e frequentemente são totalmente ignoradas. A dica final aqui então é: se você for criar um cenário de RPG onde existam religiões, pense nessas coisas! Não veja a religião como um conjunto de figuras heroicas (como Thor e Hércules), mas sim como algo que põe ideias na cabeça das pessoas, eventualmente pelo uso de figuras heroicas.

Uma pequena amostra do panteão católico
O verdadeiro significado de politeísmo

Aqui caímos então no verdadeiro sentido de politeísmo, ao menos nas religiões históricas. Uma religião politeísta não é formada por séquitos totalmente discordantes, mas sim por um conjunto central de ideias sobre o certo e o errado. Membros de uma religião politeísta podem ter preferencia por um ou outro deus, mas no final eles acreditam nos mesmos princípios gerais, e acreditam que o mundo é regido pelo mesmo conjunto de figuras. Em mundos de RPG, normalmente os seguidores de uma religião politeísta (que é a única que existe) só compartilham os conceitos de cosmologia, mas discordam totalmente sobre o que é certo e errado. Um bom exemplo são os seguidores de Khalmyr, Keen e Lena no cenário de Tormenta. Os seguidores de Khalmyr e Keen acreditam na guerra como forma de atingir objetivos ou "fazer a coisa certa", mas discordam sobre quando é certo utiliza-la.  Já Lena, deusa da vida, renega totalmente a violência, mas seus seguidores concordam com os de Khalmyr sobre o que é justo na maioria dos casos. Eu acho isso meio bizarro, a cosmologia é compartilhada, mas os seguidores de cada deus tem uma visão muito particular sobre o que é certo e errado. No final funciona, mas é bem diferente de como o politeísmo funciona nas religiões de verdade. Não existe problema nenhum com isso, mas essa não é a única solução, e soluções alternativas podem ser interessantes. Por exemplo, em um mundo com menos certeza sobre os deuses, os seguidores de Keen certamente negariam a existência de divindades como Lena e Marah, e vice-versa.

Eu acho que um bom exemplo pra sacramentar a ideia de como o politeísmo funciona no mundo real é o catolicismo. Embora os católicos se digam monoteístas, a verdade é que a igreja católica reconhece milhares de pequenas divindades, os santos, que podem ir desde santos super-centrais como a própria mãe de Cristo até santos super-periféricos como Santo Isidoro, padroeiro da internet. Embora existam discordâncias entre os católicos, existe um núcleo central de coisas que todos acreditam, envolvendo o que é pecado e o que não é, e o papel de Cristo na história da humanidade. Mas, cada católico tem um lugar especial para um ou mais santos em seu coraçãozinho, e é para esses santos que a pessoa reza, sem que ela duvide dos outros santos. Essa deveria ser a lógica de uma religião politeísta.

Mas e as ordens religiosas?
A última coisa que eu queria comentar são as ordens religiosas católicas. O próprio conceito do clérigo e do paladino do RPG vem das ordens militares católicas (como os hospitalários) que foram criadas na idade média. Até os dias de hoje, existem ordens católicas, principalmente não militares, como os franciscanos. Cada ordem possui votos diferentes e, portanto, vivem vidas diferentes e supostamente cumprem papéis diferentes dentro da igreja. Mas todos seguem os mesmos mandamentos básicos. Isso é uma ideia que está presente em muitos cenários de RPG, mas que eu acho que pode render muito mais! Conflitos entre ordens da mesma religião, ou ordens diferentes dentro da mesma religião podem ser ganchos espetaculares.

Nota final

A intenção do texto não é criticar o panteão de Tormenta! Dos cenários que eu conheço, Tormenta é o que mais investe em explicar o que os seguidores de cada deus acreditam. O objetivo era mais colocar ideias novas nas cabeças das pessoas.

Um comentário:

  1. Acabei de conhecer o blog, maaas... cara, excelente conteúdo. E bem, 6 anos na estrada, não é para qualquer um em termos de blogs e sites onde tantos vão ficando pelo caminho. Ja está salvo nos favoritos!
    Sucesso!

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